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Sobre a seca no Cerrado e nossa velocidade de adaptação

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Desde 2016, o Fundo de Parceria para Ecossistemas Críticos (CEPF, na sigla em inglês) vem apoiando projetos para o uso sustentável de recursos naturais no Cerrado. São aproximadamente 60 projetos que compreendem diferentes direções estratégicas descritas no Perfil do Ecossistema, que nos deu uma sólida base científica para o trabalho no bioma.
A partir da nossa primeira chamada, com 150 propostas, ao final do ano de 2016, fiquei surpreso com a quantidade de organizações da Caatinga que estavam à procura de apoio. Questionei-me se isso era um reflexo do aumento da seca no Cerrado, do bom preparo das organizações da Caatinga ou da simples falta de recursos disponíveis para organizações do terceiro setor
Comecei então a observar a seca no Cerrado por um ângulo mais oficial através do Monitor de Secas. O Monitor de Secas é um processo de acompanhamento regular de secas, promovido pela ANA (Agência Nacional de Águas) e foi criado em 2012, período de extrema seca no nordeste brasileiro. O objetivo principal do indicador é construir um entendimento sobre as condições da seca, sua severidade e principalmente seus impactos sobre os setores envolvidos. O monitoramento de secas deve subsidiar a elaboração de planos em bacias hidrográficas, regiões metropolitanas e municípios para uma gestão mais proativa para enfrentar as secas.

Esse excelente trabalho promovido pela ANA sofreu algumas mudanças com maior frequência nos últimos anos. Nos primeiros 52 meses, desde o primeiro registro em julho de 2014 até outubro de 2018 não houve nenhuma alteração quanto ao número de estados inclusos no Monitor de Secas.
Após esse período, Minas Gerais juntou-se aos estados do Nordeste. Em dezembro de 2019, somente 13 meses depois, o estado de Tocantins também fazia parte do grupo de estados monitorados quanto ao risco de secas. Em junho de 2020 Goiás e o Distrito Federal também entraram na lista de estados e, finalmente, Mato Grosso do Sul foi adicionado em julho de 2020.
A área monitorada praticamente duplicou e saímos de uma população estimada de 57 milhões de habitantes na seleção original de estados para 93 milhões em julho de 2020.

No segundo semestre de 2020 tivemos a inclusão de mais estados: ParanáSanta Catarina Rio Grande do Sul. Finalmente São Paulo juntou-se ao grupo em Novembro de 2020.
Partimos então de uma população de 57 milhões para 169 milhões de habitantes potencialmente sofrendo os impactos de secas no Brasil em pouco mais de 3 anos.

A forma acelerada de inclusão de novos estados leva ao entendimento de que cada vez mais a seca e seus impactos, antes limitada ao Nordeste, se expande pela região central do país. Basta saber se a sociedade consegue adaptar-se às novas condições de seca com a mesma velocidade que monitora suas mudanças.

Os sinais não estão favoráveis para essa adaptação
Nos últimos anos os conflitos de água têm aumentado no sertão brasileiro. O caso mais emblemático ocorreu na cidade de Correntina no Oeste Baiano onde a população foi às ruas em novembro de 2017 em protesto contra o uso excessivo de água que abastece a cidade. Ao mesmo tempo temos um aumento do número de projetos de irrigação para o agronegócio que pretende aumentar a área irrigada de 6,95 Mha em 2015 para potencialmente 10,09 Mha em 2030[1] . Isso considera a demanda do setor, mas pode agravar questões de distribuição para outros usuários.

Lamentavelmente, menos energia é investida na manutenção da oferta de água, na proteção de nascentes ou de áreas de recarga. No Cerrado tivemos uma perda de 408,6 mil hectares somente em 2019[2] , o que representa um desmatamento de aprox. 1000ha por dia, além do passível ambiental já identificados de 5,3Mha entre reservas legais e APPs[3]. Institucionalmente, também não estamos bem preparados para a boa gestão dos recursos hídricos. Os principais instrumentos de gestão de águas como a cobrança pelo uso da água ainda não foram implementados, mesmo 23 anos após de homologação da Politica Nacional de Recursos Hídricos.

Mas existem alguns exemplos positivos de uma gestão compartilhada para evitar secas localizadas. No Distrito Federal, na Bacia do Descoberto, ONGs, agências federais e estaduais implementaram o programa de restauração do manancial que abastece a capital. Uma estratégia similar é perseguida por um projeto no município de Extrema em Minas Gerais[6], que faz parte da bacia do Rio Piracicaba. Finalmente menciono mais um projeto que trabalha junto à cadeia do café em Patrocínio (MG), visando proteção da água e do solo da microbacia que abastasse a cidade. Aqui Lavazza, Nespresso, Nestlé, COFCO, Expocaccer e Cooxupé, a Conservação Internacional e o CEPF estão trabalhando juntos no Consórcio Cerrado das Águas em protocolos para uma agricultura resiliente às mudanças.

Resta saber se esses esforços produzem o impacto necessário, na velocidade requerida, para mitigar as mudanças descritas pelo Monitor de Secas. Para a indústria do café a seca trouxe uma queda de 40% na produção em 2021 e a necessidade de reserva R$ 150 milhões para socorrer os agricultores . A citricultura reportou uma perda de 31,4% em relação a safra do ano anterior (2019-2020).

A pergunta que devemos nos fazer é se os nossos sistemas econômicos, naturais e políticos estão maduros para absorver os choques de eventos climáticos extremos, como a seca.

No caso de Patrocínio e outras tantas cidades do Cerrado que apostam em commodities agrícolas essa pergunta se torna mais importante. Qual seria o cenário em Patrocínio caso a indústria do café não fosse mais viável na região assolada por secas recorrentes? Qual seria o destino da infraestrutura, da indústria e dos empregos atrelados a essa cadeia produtiva? Investimentos realizados, como grandes armazéns que abrigar a colheita, teriam o seu retorno garantido caso a frequência de secas aumentasse?
O importante aqui é que devemos compreender que operamos em um sistema que está mudando rapidamente; as mudanças do Monitora da Seca são apenas um sinal dessas alterações. Devemos ser capazes de adaptar o nosso comportamento em várias esferas: de governança, na economia, no meio ambiente, na sociedade e nas empresas para criarmos sistemas mais resilientes que possam criar soluções que se retroalimentam positivamente.

Esse conceito de resiliência profunda , cunhado pelo grupo de pesquisa AGWA, pode ser traduzido para o projeto do café de Patrocínio como um círculo virtuoso onde os torrefadores investem na produção sustentável, trazem benefícios aos produtores, que conservam as águas da cidade. Isso garante a produção de um bom café que ganha notoriedade internacional pelo valor agregado. Há ainda um ganho de marca por associação a práticas sustentáveis, ampliando a percepção positiva por parte dos consumidores. Por sua vez, a conservação da água garante a produção e o sustento de toda uma cidade a longo prazo.

Nesse sentido, a conservação de recursos naturais não é somente uma questão de proteção da água, mas sim a proteções de um modo de vida de toda uma microrregião.

Resta saber o quão rápido podemos implementar as mudanças necessárias e para nos adaptarmos de maneira planejada e positiva, não em consequência das tragédias que sempre estão atreladas a grandes perdas sociais, ambientais e econômicas. De uma maneira ou outra as mudanças que trazem as adaptações virão.
Agradeço pela cooperação de Michael Jackson de Oliveira neste artigo.
[1] Agência Nacional de Águas (Brasil). Atlas irrigação: uso da água na agricultura irrigada / Agência Nacional de Águas. - Brasília: ANA, 2017.
[2] Mapbiomas, Relatório Anual do Desmatamento no Brasil, 2019
[3] Planaveg: Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa / Ministério do Meio Ambiente, Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Ministério da Educação. – Brasília, DF: MMA, 2017